"Perfeita!" Jal Vieira assina figurino que dá voz a Corpos Dissidentes
Jal Vieira cria figurino para Sol Menezzes em Perfeita!, unindo ancestralidade e futurismo para amplificar a força da personagem.
Foto: Priscila Prade
Em cartaz no Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, o espetáculo Perfeita! tem chamado atenção não só pela trama distópica, mas também pelo figurino vibrante e repleto de significado criado por Jal Vieira para a personagem de Sol Menezzes. Unindo elementos afrodiaspóricos e futuristas, Jal trouxe à peça uma estética rica que dialoga com os temas da narrativa.
Jal Vieira é reconhecida por seu trabalho que une moda urbana e alfaiataria em criações que dialogam com questões sociais e identitárias. Nascida e criada em São Paulo, Jal cresceu imersa na diversidade cultural da cidade, o que influenciou diretamente sua visão artística e seu estilo. Fundadora da marca que leva seu nome, ela conquistou espaço na cena fashion ao incorporar elementos de streetwear com uma abordagem sofisticada e engajada.
Foto: Pedro Gabriel
Suas coleções frequentemente exploram narrativas de resistência e empoderamento, destacando corpos dissidentes e perspectivas afrodiaspóricas. Além de seu trabalho na moda, Jal também atua no teatro, onde desenvolve figurinos que traduzem as histórias e emoções dos personagens de forma inovadora e autêntica. Conversamos com a estilista para entender o processo criativo por trás dessa construção tão singular.
Jal, como foi o processo de criação do figurino de Sol Menezzes para a peça Perfeita!? Que inspirações iniciais você trouxe para compor o visual da personagem?
O processo de inspiração desse trabalho foi construído a quatro mãos, entre mim e a Sol. Ela já tinha elucidado muito da personagem, já que estava imersa nesse mergulho criativo. Sol tinha um desejo de utilizarmos peças mais amplas, e somamos essas vontades às minhas visões e referências. A imagem da mulher que construímos foi resultado dessa colaboração. Tivemos como referência uma deusa chamada Bastet, com seu rosto de gato, que foi trazida pela própria Sol como conexão com a ancestralidade da personagem. Essa ancestralidade é profundamente conectada à racialidade, mostrando que a personagem não é só fictícia — ela poderia existir hoje.
Além disso, nos apoiamos no afro-surrealismo, um movimento que nasceu na poesia e se disseminou por outras artes. Diferente do afrofuturismo, que projeta o futuro, o afro-surrealismo articula o presente como ponto de partida para imaginar o futuro. Essa abordagem ajudou a integrar a ancestralidade da personagem com sua visão do amanhã.
Foto: Priscila Prade
A peça se passa em um futuro distópico, mas você menciona que o figurino reflete realidades sociais presentes e passadas. Quais aspectos do mundo atual e da ancestralidade você buscou integrar ao design?
A gente se debruçou em referências afro-surrealistas. Esse movimento, que surge no passado, nos Estados Unidos, continua atual com suas discussões sociais. O contexto da peça traz um comandante que tenta eliminar um povo, os agregatos. Embora não seja nomeado racialmente, conseguimos transpor isso para a nossa realidade: vivemos uma sociedade extremamente desigual.
Os agregatos simbolizam comunidades marginalizadas, e o comandante representa figuras históricas que perpetuam a desigualdade para manter privilégios. O figurino traduz essa narrativa, utilizando tons terrosos, como o bordô, que remete à conexão com a terra — um saber que os agregatos dominam na história.
Por exemplo, o primeiro figurino da Sol traz uma saia de neoprene que simboliza força e modernidade. Essa escolha de material e forma reflete como a personagem equilibra ancestralidade e resistência no presente, mirando no futuro.
Foto: Priscila Prade
A simbologia Sankofa aparece como uma das inspirações para o figurino. Como você incorporou essa ideia ao visual da personagem, especialmente em termos de acessórios e detalhes?
Sankofa é um símbolo adinkra representado por um pássaro que olha para trás enquanto voa para frente. Essa ideia de olhar para o passado enquanto se projeta no futuro foi essencial para o figurino. Incorporamos Sankofa em elementos como acessórios e detalhes sutis, mas cheios de significado.
Os brincos da Sol, por exemplo, trazem espirais de metal combinados com dentes ornamentados, remetendo à força e à ancestralidade. Nos punhos, ela usa badulaques com simbologias de proteção, inspirados em joias de crioula. Esses acessórios têm raízes na época da escravidão, mas também são símbolos de empoderamento e identidade.
Outro detalhe é o uso de um pano ancestral na cintura durante uma performance corporal na peça. Esse pano, uma herança afrodiaspórica, protege o útero e mantém o corpo seguro e aquecido, conectando a personagem a tradições africanas que sobrevivem até hoje.
Foto: Priscila Prade
Como você escolheu as combinações de materiais e shapes para dar vida ao equilíbrio entre referências afrodiaspóricas e elementos futuristas?
Esse equilíbrio foi possível graças às conversas e trocas intensas com a Sol. Ela me guiou com sua visão da personagem, e juntos construímos um figurino que representasse essa mulher com toda sua complexidade.
Optamos por shapes amplos, mas com recortes modernos, e acessórios que quebrassem a volumetria, trazendo pontos de luz. Um exemplo é um look preto com detalhes dourados, que criam um contraste impactante. Essa construção coletiva, baseada na confiança e no diálogo, reflete uma visão de mundo que acredita no poder do coletivo.
Foto: Priscila Prade
A moda urbana e a alfaiataria são pontos fortes do seu estilo, e eles também aparecem no figurino de Perfeita!. Como você adaptou essas características para o universo da peça e a complexidade da personagem?
A personagem mulher tem muito do que eu quero discutir socialmente. Ela é estratégica, inteligente e altruísta, mas essa postura a desumaniza em certos momentos, pois ela se coloca em risco pelo bem do coletivo. Isso se conecta muito com as narrativas de corpos dissidentes na sociedade.
Minha alfaiataria com streetwear dialoga organicamente com essas questões. Foi fluido adaptar meu estilo ao figurino porque ele já é uma extensão do que eu acredito e discuto. A personagem, assim como meu trabalho, projeta um futuro em que não queremos mais apenas sobreviver, mas viver plenamente.
Foto: Priscila Prade
Em sua visão, como o figurino contribui para amplificar a mensagem e a personalidade da protagonista na peça?
O figurino amplifica a mulher porque foi construído junto com ela. A Sol estava vivenciando a personagem, sentindo suas emoções e sua história. Por isso, ela foi essencial para guiar o caminho criativo. Esse processo reflete nossa narrativa enquanto pessoas negras: falar por nós mesmos, sermos ouvidos e representados.
Houve algum elemento ou detalhe específico no figurino que você considera essencial para traduzir a conexão da personagem com sua ancestralidade e o futuro?
Os acessórios foram fundamentais para essa tradução. O pano na cintura, os badulaques, os brincos... Cada detalhe carrega uma simbologia que conecta a personagem à ancestralidade e ao futuro. Esses elementos não gritam, mas estão ali com uma intencionalidade viva, mostrando que cada escolha é carregada de significado.
Foto: Pedro Gabriel
Perfeita! está em cartaz no Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, até 24 de novembro. Com direção de Ulysses Cruz e dramaturgia de Samir Yazbek, a peça conta com Sol Menezzes, Sergio Guizé e Gustavo Machado no elenco.
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